The rise and fall
As gotas de chuva caem aos pares, dançando pelas folhas como se não houvesse dia nem noite, num êxtase de libertação alucinante, marcando o ritmo aos que se não querem molhar e àqueles que saem ao seu encontro, em resposta a dias infindáveis de frio seco e amargo.
É sábado, já contam as horas finais deste dia comprido. Ao som da cítara e de uma chuva que a acompanha, as teclas parecem fugir à sinfonia marcando outra música própria. Calmamente, aproveito estes minutos para entrar dentro de mim e recriar um pouco do que encontro, do que vejo, do que sinto, do que sou.
A música que oiço por momentos afasta-me de qualquer pensamento, suavizando os meus olhos, travando os meus dedos e abrindo os meus ouvidos a todo o meu corpo. Os pés estão longe e sob o peito nasce uma espiral em movimento. É a sensação por que mais anseio: tranquilidade. Não esperava que viesse agora. Pode tudo ser tão simples, e nestes pequenos sinais está tudo claro de que assim é.
Adicionei a letra de uma música "Shape of my heart" que ouvia há uns minutos atrás. Não adicionei apenas porque gosto de a ouvir, mas porque faz sentido com aquilo que vi hoje no cinema. Um filme pesado que me fez pensar nas circunstâncias da vida, na forma como vivemos os nossos dias, nas formas que existem de se viver. No final não há certezas de nada, nem do que podemos esperar de nós, nem do que podemos esperar dos outros. E há aquela sensação que se apodera de vez enquanto de querer sentir sempre o limite de uma emoção para nos sentirmos verdadeiramente vivos. Chegar aos nossos limites, mexer com os limites dos outros. Será o nosso "agora" tão importante? Porquê? Para quê? A vida é feita de "insignificantes" momentos, para quê torná-los maiores do que realmente são? Mas chega a alturas em que, de facto, os momentos são decisivos e, cabe-nos a nós descobrir quando realmente estamos a mudar alguma coisa. Essa descoberta pode demorar, pode-se revelar falsa, pode ser ilusória, mas o sentido está em descobrir o que estamos a fazer e o que vamos fazendo. Mas confiamos apenas no nosso instinto? Não. Confiamos nos vários espelhos que nos perseguem, que nos acompanham, que se cruzam connosco, que criamos e que existem para nós. Porque o nosso espelho interior tem alma própria, humores desconhecidos, inconstâncias perigosas que não podemos controlar nem confiar como confiámos em ocasiões em que nos provaram que estávamos errados. Somos tão falsos quanto os outros e cada um combate a sua luta, porque é difícil sermos sempre sinceros e convictos daquilo que somos e daquilo que pensamos que os outros são. A sinceridade está longe de onde a coerência se levanta, chego-me a perguntar se podemos realmente ser sinceros?... quantas vezes estamos amarrados a falsas verdades que fazem sentido, jogando minuto e minuto a sentido que lhes damos?
Ao som da cítara apercebo-me de que nos rodeamos de sentidos para preencher a falta de sentido real, a pureza da compreensão e a tranquilidade de lidar com a vida como as notas lidam umas com as outras, ou gota a gota que vai caindo no chão.
Ao som da música que transcrevi relembro as inquietações de um jogo onde vamos jogando cartas poderosas que perdem todo o significado quando se fazem más apostas. "And you can easily gamble your life away, second by second and day by day...".
No final jogamos aquilo que nos calhou ou continuamos a jogar até que nos calhe a mão por que esperamos para ganhar? É esperar para ver onde o jogo nos leva, mas ser um jogador que obedece às suas regras e não se contenta com as cartas que lhe dão. É estar atento ao nosso jogo, ao que temos para passar à próxima rodada, ir sobrevivendo às derrotas sempre com certeza das vitórias.
What´s the shape of my heart? It´s what they call, the rise and fall.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home